quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Révolutions

A revolução fotografada



Vestígios das barricadas da rua Royale, 1848


Duas barricadas obstruem uma rua estreita. Os combatentes estão invisíveis. Esperam um ataque iminente. A barreira mais próxima do fotógrafo, construída com paralelepípedos e as rodas de uma carruagem, parece atravessada por uma lança que poderia ser uma haste de bandeira (vermelha?). A rua está vazia. Quase se escuta o silêncio da espera.

Essa barricada não deixa de parecer com a da rua Saint-Maur, em junho de 1848, descrita por Victor Hugo, em Os miseráveis:

Esse muro foi edificado com paralelepípedos. Era reto, frio, perpendicular, nivelado a esquadro, retificado com barbante, alinhado a fio de chumbo. [...] A rua estava deserta a se perder de vista. Todas as janelas e as portas fechadas. [...] Não se via ninguém, não se ouvia nada; nem um grito, nem um ruído, nem um suspiro. Um sepulcro[1]


Barricadas antes do ataque, rua Saint-Maur, 25 de junho de 1848
(fonte: Barricades rue Saint-Maur. Avant l'attaque, 25 juin 1848. Après l’attaque, 26 juin 1848. THIBAUL. ©Photo RMN - H. Lewandowski)


A mesma barricada no dia seguinte: o cenário após a Batalha. A rua fervilha de gente: militares, tropas de choque, ambulantes. Passeiam entre as barricadas, esburacadas, mas ainda inteiras. Os insurgentes estão ausentes: mortos, fugidos, presos? O que é certo é que foram vencidos.

Estes dois daguerreótipos[2], tirados de uma janela em 25 e 26 de junho de 1848 por um certo Thibaut, sobre o qual não se sabe muita coisa, estão entre os primeiros registros fotográficos de uma revolução.


Barricadas após o ataque, rua Saint-Maur, 26 de junho de 1848
(Fonte : Barricades rue Saint-Maur. Avant l'attaque, 25 juin 1848. Après l’attaque, 26 juin 1848. THIBAULT© Photo RMN - H. Lewandowski)


Data da mesma época um terceiro registro, feito por Hippolyte Bayard: a barricada destruída da rua Royale. É uma imagem melancólica: do sonho utópico dos insurgentes, não resta senão a ruína, monte de pedras dispersas. A rua pode parecer deserta, mas a presença de algumas carroças e carrinhos de mãos parece indicar que alguém se prepara para repavimentá-la. A batalha terminou. A ordem reina em Paris.

É enorme o contraste entre essas primeiras imagens de barricadas revolucionárias, esplêndidas, mas imóveis, enigmáticas e distantes, e aquelas de Barcelona, em julho de 1936, quase um século depois. Os sacos de areia substituíram os paralelepípedos. O fotógrafo não está mais numa sacada, mas bem mais próximo, ou mesmo no meio dos insurgentes. E, sobretudo, veem-se os rostos dos combatentes, os sorrisos, as mãos desajeitadas que seguram o fuzil ou o punho erguido. Contudo, apesar das mudanças, a barricada está sempre lá, sinônimo de sublevação popular, de iniciativa revolucionária. Não é por acaso que o hino da CNT [Confederação Nacional do Trabalho], o grande sindicato anarquista, começa com o chamado: A las barricads! A las barricadas!

Nova mudança de cenário: estamos em maio de 2008. Os paralelepípedos são de novo arrancados do chão, e os rebeldes, quase todos jovens, em alegre solidariedade, erguem uma barricada. Mas dessa vez, ao contrário de Barcelona em 1936 ou Paris no século XIX, não há fuzis. Não se mata o inimigo, há escárnio, zombarias, às vezes alguém o arranha ao lançar uma pedra. Há muito barulho e fumaça, mas a queda da barricada não conduz mais à execução dos rebeldes, fuzilados pela força da ordem: o combate acaba com a dispersão dos jovens, que logo se reagrupam noutra parte.

Voltemos um instante às barricadas de junho de 1848, as primeiras da história fotográfica das revoluções. Elas constituem uma guinada histórica: o início “da guerra civil entre o capital e o trabalho”, escreverá Marx. E introduzem um novo significado à palavra revolução: não mais uma simples mudança na forma de Estado, mas uma tentativa de subversão da ordem burguesa[3]

Qual era a eficácia político-militar da barricada? Para Auguste Blanqui – de todos os revolucionários do século XIX este é, sem dúvida, aquele que mais refletiu sobre a questão -, a eficácia é indispensável para o triunfo da sublevação, desde que se saiba tirar as lições da derrota de junho de 1848. Como explica detalhadamente em suas Instructions pour une prise d’armes (1869) [Instruções para uma tomada pelas armas], é imperativo organizar um rede entre as barricadas assim como é preciso erguê-las de modo que sejam indestrutíveis, usando não menos que 9196 paralelepípedos por muralha[4]. Friedrich Engels, ao contrário, é mais cético. Em seu célebre texto de 1895, insiste logo de início na ideia de que a barricada tema mais moral que material: visa abalar o moral das tropas governamentais. De se ponto de vista, o aperfeiçoamento técnico dos fuzis e da artilharia, assim como as novas ruas modernas, retas e largas (Haussmann!), são elementos desfavoráveis às barricadas[5]

Momento mágico, luz inesquecível que escapa do desenrolar casual das sucessões ordinárias, a revolução é assunto de imagem, mais do que de conceito. Sobrevive e propaga-se pelo imagem e, desde o fim do século XIX, (também) pela imagem fotográfica.[6]

É claro que as fotografias não podem substituir a historiografia, mas elas captam o que nenhum outro texto escrito pode transmitir: certos rostos, certos gestos, certas situações, certos movimentos. A fotografia possibilita que se veja, de modo concreto, o que constitui o espírito único e singular de cada revolução. Alguns críticos negam o valor cognitivo das fotografias de acontecimento. Por exemplo, o grande teórico do cinema Siegfried Kracauer tinha convicção de a foto não permite conhecer o passado, mas somente “a configuração espacial de um instante”. Num ensaio de 1927, chega a denunciar as revistas ilustradas como “uma ferramenta de protesto contra o conhecimento”[7] Essa opinião é compartilhada, meio século depois, por Susan Sontag, em seu livro Sobre a fotografia: citando Brecht, segundo o qual uma foto das usinas Krupp não revela praticamente nada sobre essa instituição capitalista, ela afirma que somente a maneira narrativa pode permitir a compreensão. Para ela, a fotografia, "afinal de contas, nunca pode nos trazer nenhum conhecimento de ordem ética ou política”[8].

Esse ponto de vista me parece bastante discutível. É verdade que a fotografia não pode substituir a narrativa histórica, mas isso não a impede de ser um instrumento insubstituível de conhecimento histórico, que torna visíveis aspectos da realidade que frequentemente escapam aos historiadores. A foto das usinas Krupp não acrescenta nada, mas a do senhor Krupp cumprimentando Hitler, em companhia de outros industriais e banqueiros, é um documento fascinante sobre a cumplicidade entre capitalistas alemães e nazismo.

A contribuição específica da documentação fotográfica é posta em evidência, com muita perspicácia, pelo antropólogo e historiador Marc Auge:

As fotos de imprensa ou agências [...] colocam a História no presente, restituindo-lhe a espessura, a contingência, a imprevisibilidade. O indivíduo, o acontecimento, a anedota ocupam todo o seu espaço e isso não significa que a História não tenha sua importância: uma das tarefas do historiador, se deseja compreender uma época, é precisamente imaginar o presente dela, fazer o inventário de suas possibilidades, escapar da ilusão retrospectiva.[9]

Afirmar a importância da fotografia para o conhecimento dos eventos re-volucionários não implica que se trate de um documento puramente objetivo. Cada uma dessas imagens é ao mesmo tempo objetiva - como imagem do real - e profundamente subjetiva, pois traz, de um modo ou de outro, a marca de seu autor. Seria preciso toda a ingenuidade - tingida de positivismo - do fotógrafo, pintor e teórico húngaro Lásló Moholy-Nagy para acreditar, em 1925, na plena objetividade da fotografia: “O aparelho fotográfico é a mais segura ferramenta que nos permite começar a ter uma visão objetiva. Cada um será obrigado a ver o que é verdadeiro do ponto de vista ótico, o que se explica por si, o que é objetivo, antes de poder formular uma posição subjetiva”[10]. Esse método abstrai a carga subjetiva que resulta da personalidade, da cultura ou das opções políticas do fotógrafo. Como escreve Cordelia Dilg a propósito de suas fotos da Revolução Nicáraguense: "Nenhuma foto é produzida sem intenção. Eu escolho o objeto, decido o instante da tomada, determino a forma estética e completo as fotos com uma legenda (um texto)”[11]

A escolha da documentação nesse trabalho por vezes é arbitraria, como em toda seleção desse tipo. Mas, por sua diversidade e riqueza, apresenta uma imagem plural de cada revolução, naquilo que tem de universal e em sua especificidade histórica, cultural e nacional. Vemos aparecer a revolução não como uma abstração, uma ideia, um conceito, uma "estrutura", mas como uma ação de seres humanos vivos, homens e mulheres que se insurgem contra uma ordem que se tornou insuportável.

Encontramos nessa pilha de documentos verdadeiras obras de arte e simples instantâneos, trabalhos profissionais e outros de amadores. Não quisemos privilegiar a obra de alguns fotógrafos célebres: as cenas mais surpreendentes, mais belas ou mais "históricas" não são obra em geral de anônimos? Recorremos a múltiplos recursos: agências de notícias, sem dúvida, mas também museus, arquivos, coleções particulares - não só em Paris, mas também em Budapeste e México, Amsterdã e Berlim, passando por Praga e Munique. O conjunto, fruto de dois anos de pesquisas intensas, oferece uma viagem no tempo e no espaço revolucionário, um mergulho numa história que está longe de acabar[12].

As fotos são, ainda, mais polissêmicas que os textos: podem ser interpretadas de diferentes maneiras, bastando um título para modificar seu significado, ou mesmo transformá-la em seu contrário[13]. Os registros que encontramos estão frequentemente mal legendados: parte importante da pesquisa consiste em atribuir-lhes um título preciso. Walter Benjamin insistia, com razão, na importância das legendas e via nas das montagens de Heartfield um exemplo de utilização do texto como “pavio que aproxima as faíscas críticas da massa de imagens”[14].

No nascimento da fotografia, no século XIX, os setores mais conservadores das classes dominantes se horrorizaram com a nova descoberta. O Leipziger Stadtanzeiger, diário alemão de tendência chauvinista, denunciava essa arte diabólica vinda da França: “Querer fixar imagens fugidias de espelho não é somente uma impossibilidade, como solidamente provaram os trabalhos da ciência alemã, mas o projeto em si é blasfematório. O homem foi criado à imagem de Deus e essa imagem não pode ser fixada por nenhuma máquina humana”[15].

Do outro lado da barricada também havia desconfiança, mas por outras razões. Até os anos 1920, a prática da fotografia era extremamente limitada nos meios operários, socialistas ou revolucionários: estes últimos são objetos, mas não sujeitos dos instantâneos. A maioria das imagens da Comuna de Paris, das duas Revoluções Russas ou da Revolução Alemã de 1918-1919 foi feita por fotógrafos profissionais, que trabalhavam na maior parte das vezes para a imprensa burguesa. Daí a desconfiança que às vezes se observa no rosto dos combatentes fotografados - ainda mais que, em caso de derrota da insurreição, esse material documental podia facilmente servir às forças repressivas para identificar os revolucionários. Roland Barthes remete ao "poder mortífero" da fotografia e cita um exemplo de 1871: “Alguns partidários da Comuna pagaram com a vida pela complacência de posar em cima das barricadas: vencidos, foram reconhecidos pelos policiais de Thiers e quase todos fuzilados”[16]

Alguns desses fotógrafos profissionais simpatizavam com a causa revolucionária, mas seu trabalho estava submisso a restrições externas. Assim, por exemplo, existem dezenas de fotos da execução de dez reféns feitos pelos revolucionários em Munique, em 1919, e somente duas das 1,5 mil pessoas mortas pela repressão entre janeiro e março do mesmo ano em Berlim[17]

A medida que se avança no tempo, a fotografia torna-se não apenas um espelho - necessariamente deformador - dos eventos revolucionários, mas também um ator histórico, um instrumento de combate. Cada campo, nos enfrentamentos ou nas guerras civis, utiliza a fotografia como meio de propaganda, símbolo de união, sinal de reconhecimento. E, é claro, as fotografias das revoluções anteriores inspiram cada nova revolução[18]

Algumas fotos mostram os dirigentes, os líderes, os "cabeças" das revoluções. Esses personagens emblemáticos são quase sempre os vencidos: Auguste Blanqui, Emiliano Zapata, Rosa Luxemburgo, Leon Trotski, Ernesto Che Guevara, Carlos Fonseca. Walter Benjamin não estava errado quando insistiu na força messiânica das vítimas, dos vencidos da história, dos antepassados martirizados como fonte de inspiração para as gerações seguintes. Mas a maioria dessas imagens é povoada por multidões anônimas, por desconhecidos: o povo insurgente. São artesãos parisienses, marinheiros russos, trabalhadores alemães ou húngaros, milicianos espanhóis, camponeses chineses, indígenas mexicanos. Se, como sublinha Trotski em sua História da Revolução Russa (1932), “o traço mais incontestável da revolução é a intervenção direta das massas nos acontecimentos históricos”[19], esse traço devia ser necessariamente impresso no papel sensível dos fotógrafos. O que a objetiva capta em movimento, em ação, é a transformação dos excluídos, dos oprimidos, das “classes subalternas” em protagonistas de sua própria história, sujeitos de sua própria emancipação. Os fotógrafos registram, preto no branco, o momento histórico privilegiado em que a longa cadeia da dominação se interrompe. A sequência descontínua dessas interrupções revolucionárias constitui a tradição dos oprimidos, tradição que remonta a tempos muito anteriores à intervenção de Daguerre.

As fotos de revoluções - sobretudo se foram interrompidas ou vencidas - possuem assim uma poderosa carga utópica[20]. Revelam ao olhar atento do observador uma qualidade mágica, ou profética, que as torna sempre atuais, sempre subversivas. Elas nos falam ao mesmo tempo do passado e de um futuro possível




[1] Victor Hugo, Les misérables (Paris, Flammarion, 1979, v. 3), p. 200-1. [Ed. Bras. Os miseráveis, trad. Francisco Ozanam Pessoa de Barros, 3 ed., São Paulo, Cosac Naify, 2009] Hugo contribuirá muito para a construção das barricadas como mito revolucionário. Certamente ele se refere às barricadas de 1832, que ocupam a praça principal na narrativa de Os miseráveis, mas também fará referência às construções dos insurgentes de junho de 1848, como a da entrada do subúrbio de Saint-Antoine, descrito ora como um monstro, ora como um momento sagrado: “Era desmensurada e viva; e como das costas de uma besta elétrica, soltava fagulhas de raio. O espírito da revolução cobria com sua nuvem o pico onde troava essa voz do povo que se assemelha à voz de Deus; uma majestade estranha desprendia desse titânico monte de escombro” (ibidem, p. 199)
[2] Fotografia obtida por um processo inventado por Louis Daguerre, 1839, que consisitia em fixar a imagem numa película de prata. (N.T.)
[3] Karl Marx, Les luttes de classe em France, 1848-1850 (Paris, Éditions Sociales, 1948), p. 59 e 63 [Ed. Bras. : As lutas de classe na França (1848-1850), São Paulo, Globla, 1986.]
[4] Auguste Blanqui, Instructions pour une prise d’armes (paris, Éditions de la Tête des Feuilles, 1972), p. 51.
[5] Friedrich Engels, “Introuctions”(1895), em Karl Marx, Les luttes de classe em France, cit., p. 33-4.
[6] Ver Daniel Bensaïd, Les pari mélancolique (Paris, Fayard, 1997), p. 281-3
[7] Siegfried Kracauer, Die Photographie (1927), (Frankfurt, Suhkamp, 1990, Schrifren, vol. 5.2), p. 92-3. Ver os comentários críticos bastante pertinentes de Enzo Travesso sobre esse ensaio em seu livro Siegfried Kracauer: itinéraitre d’um intellectuel nômade (Paris, La Decouverte, 1994, p. 92-6
[8] Susan Sontag, Sur Ia photographie (Paris, Christian Bourgois, 1993), p. 38. [Ed. bras.: Sobre a fotografia, São Paulo, Companhia das Letras, 2004.]
[9] Marc Auge, Paris, années 30 (Roger-Viollet) (Paris, Hazan, 1996), p. 10. Ver também p. 11: “A força da fotografia instantânea se sustenta também no fato de propor ao nosso olhar cenas que não são mostradas pelos historiadores [...]: não somente as atitudes, as expressões fugidias em que se podem ler a alegria, o medo, a dúvida de um ator dessa história que se está construindo, mas também, e ainda mais, os gestos, os movimentos, a energia ou a perplexidade de todos aqueles por meio dos quais ela se constrói [...]".
[10] Lásló Moholy-Nagy, citado em Susan Sontag, Sur Ia photographie, cit., p. 235.
[11] Cordelia Dilg, Nicarágua, Bilder der Revolution (Colônia, Pahl-Rugenstein, 1987), p. 2. Ela acrescenta a seguinte explicação, nada insignificante: "Essas legendas podem mudar o significado da fotografia e são, portanto, uma parte da informação".
[12] Digo "nós", mas é maneira de dizer: esse trabalho foi realizado por nossa documentalista, Helena Staub.
[13]Um exemplo recente bastante conhecido é a foto de uma pilha de cadáveres de vítimas da ditadura de Somoza sendo incinerados que, graças ao Fígaro, se tornou uma imagem de índios miskitos assassinados pelos sandinistas...
[14] Walter Benjamin, Pariser Brief (2): Malerei und Photographie (1936) (Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1980, Gesammelte Schriften), p. 505. [Ed. port.: "Cartas a Paris (2): pintura e fotografia", em A modernidade, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007.]
[15] Leipziger Stadtanzeiger, citado em Walter Benjamin, « Petite histoire de Ia photographie » (1931), em Poésie et révolution (Paris, Denoèl, 1971), p. 16. [Ed. bras.: “Pequena história da fotografia”, em Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política, 10. ed., São Paulo, Brasiliense, 1996.]
[16] Roland Barthes, La chambre claire: note sur Ia photographie (Paris, Cahiers du cinema, Gallimard/Seuil, 1980), p. 25. [Ed. bras.: A câmara clara, 7. ed., São Paulo, Nova Fronteira, 2000.]
[17] Ver Dietehart Krebs, "Einlekung" e "Révolution und Fotografie", em Thomas Friedrich, Tatjana Schmolling et ai., Révolution und Fotografie, Berlin 1918/1919 (Berlim, Dirk Nishen, 1989), p. 9-24.
[18] Eis como Walter Benjamin descreve essa qualidade: “A mais exata técnica pode conferir a seus produtos um valor mágico que nenhuma imagem pintada poderia ter agora para nós. [...] Na maneira de ser singular desse minuto, há muito passado, aninha-se ainda hoje o futuro, e tão eloquente que, por um olhar retrospectivo, podemos reencontrá-lo”. Ver Walter Benjamin, « Petite histoire de Ia photographie », cit., p. 19.
[19] Leon Trotski, Histoire de la Révolution Russe (Paris, Seuil, 1950), p. 13. [Ed. bras.: História da Revolução Russa, São Paulo, Paz e Terra, 1980.]
[20] Uma fotografia poderia ser um fator decisivo numa revolução? É o que propõe, na forma de ficção, um filme norte-americano recente, inspirado na Revolução Nicaraguense, Sob fogo cruzado (1983), de Roger Spottiswoode. O principal dirigente da insurreição é morto num confronto com o exército (a exemplo de Carlos Fonseca, fundador da Frente Sandinista, em 1976). A ditadura triunfa e proclama que a rebelião foi subjugada. Os camaradas, que conseguiram salvar o corpo do líder, pedem a um fotógrafo amigo que os ajude numa manobra: ele o fotografa sentado, lendo um jornal, o que dá a ilusão de que está vivo. A foto, publicada em toda a imprensa, inflama os insurgentes e o povo, que derrubam a tirania. O cenário é imaginário, mas nem por isso menos crível.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Evidência e escala de observação (FLH-5226)


Figure des Brifilians.
Fête brésilienne donnée à Rouen en l'honneur du roi Henri II.
1550.

Docente Responsável: Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron

Carga Horária: 3 semanas, 4 aulas por semana (120 horas)

Objetivos

1. Investigar a noção de evidência, em História e sua relação com as escalas de observação com as quais trabalha o historiador.

2. Estudar como a evidência se traduz em imagens, seja nas fontes visuais, seja nos discursos historiográficos.

3. Analisar a relação existente entre ideias e relações sociais.

Conteúdo

O curso é especificamente dirigido aos professores do Doutorado Interinstitucional (Dinter) USP-UFAC, visando fornecer instrumentos para a boa consecução de suas respectivas pesquisas e teses. Partindo da análise de seus projetos de pesquisa, algumas problemáticas comuns foram identificadas, as quais consubstanciam o conteúdo do presente programa.

I.1

O curso investigará como se constituiu a noção de evidência, em história. Para tanto, analisaremos como esta noção apareceu em textos clássicos (Heródoto, Tucídides, Políbio) e a maneira como foi retomada pela historiografia recente (partindo de Charles Seignobos e Charles-Victor Langlois, passando em seguida pelo olhar distanciado do antropólogo Claude Lévi-Strauss, e voltando aos historiadores Giovanni Levi, Carlo Ginzburg, Michel de Certeau, François Hartog, Carlos Alberto Vesentini).

I.2

Em seguida, analisaremos como a evidência foi qualificada e utilizada pelos historiadores, nas diferentes escalas de observação. Para tanto, analisaremos as propostas metodológicas de Marc Bloch, de Fernand Braudel, de Reinhart Koselleck, de Michael Löwy, de Edoardo Grendi, entre outros autores.

I.3

Finalmente, a partir destas reflexões, avaliaremos as propostas de Maurice Godelier concernentes ao papel das ideias na produção das relações sociais.

II

Numa segunda parte do curso, desenvolveremos um trabalho de leitura de fontes visuais, as quais servirão de suporte para problematizarmos as noções de evidência e de escala de observação: a) escalas de observação (Michelangelo Antonioni, Chung Kuo – Cina, 1972); b) a imagem singular (Anônimo, “Figure des Brésiliens”, 1550); c) as imagens em série (seleção iconográfica sobre a mestiçagem no Brasil, séculos XVI-XX); d) a imagem complexa (Ambroggio Lorenzetti, “Alegoria do bom governo”, 1337-1340).

III

A terceira e última parte do curso consistirá em exercícios práticos, quando retomaremos os projetos de pesquisa de cada participante do Dinter USP-UFAC, visando problematizar a maneira como operam com as referidas noções de evidência e escala de observação, e o trabalho específico que estão desenvolvendo com suas fontes primárias.

Forma de Avaliação

Um trabalho escrito, a ser entregue após o final do curso.

Bibliografia básica

Arendt, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007.
Bloch, Marc. Introdução à História. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997.
Braudel, Fernand. “História e ciências sociais: a longa duração. Revista de História. São Paulo, 30 (62), abril-junho 1965, p. 261-294 (disponível on-line).
Braudel, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII, 3 vols., São
Paulo, Martins Fontes, 1996-1998.
Campos, Pedro Moacyr. “Esboço da historiografia brasileira nos séculos XIX e XX”. Revista de História. São Paulo, n.45, janeiro-março 1961, p. 107-159.
Cardoso, Ciro Flamarion da Silva. “História e paradigmas rivais”. In: Idem (org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: campos, 1997, p. 1-23.
Certeau, Michel de, L'écriture de l'histoire, Paris, Gallimard, 1975 (trad. port.: Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010).
Ginzburg, Carlo. Il giudice e lo storico: considerazioni in margine al processo Sofri. Torino: Einaudi ,1991.
Ginzburg, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Godelier, Maurice. L’idéel et le matériel. Pensée, économies, sociétés. Paris: Payard, 1984.
Goldmann, Lucien. “O todo e as partes”. In: Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 3-25.
Gurvitch, Georges. The spectrum of social time. Dordrecht: D. Reidel Publishing Co., 1964.
Hartog, François. Évidence de l’histoire.Paris: Gallimard, 2005.
Hartog, François. “Entre os antigos e os modernos, os selvagens. Ou, de Lévi-Strauss a Lévi-Strauss”. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n° 110, julho-setembro 1992, pp. 43-54.
Koselleck, Reinhart. “Histoire des concepts et histoire sociale. In: Le futur passé. Contribution à la sémantique des temps historiques. Paris: ed. EHESS, 1990, p. 95-118 (trad. port.: Rio de Janeiro: Contraponto, 2010).
Langlois, Charles-Victor e Seignobos, Charles. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946.
Lévi-Strauss, Claude. “Les trois humanismes”. In: Anthorpologie structurale II. Paris: Plon, 1974, p. 319-322 (trad. port.: São Paulo: Cosac Naify, 2008).
Löwy, Michael. “A revolução fotografada”. In: Idem (org.) Revoluções. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 9-19.
Martius, Carlos Frederico Ph. de. “Como se deve escrever a história do Brasil”. In: Revista Trimensal de História e Geografia. Rio de Janeiro, v.6, n.24, 1845, p. 389-411.
Momigliano, Arnaldo D., Les fondations du savoir historique, Paris, Les Belles Lettres, 1992.
Momigliano, Arnaldo D., Sagesses barbares, Paris, Maspero, 1979.
Momigliano, Arnaldo D., Studies in historiography, London, Weidenfeld and Nicholson, 1966.
Oliveira, Mônica Ribeiro e Almeida, Carla Maria Carvalho de (orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: editora FGV, 2009.
Tucídides. “Proêmio” e “Arqueologia”. In: História da guerra do Peloponeso. Brasília: ed. UnB, 1986, p. 19-29.
Vesentini, Carlos Alberto. A teia do fato. São Paulo: Hucitec, 1997.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Guerra do Peloponeso

História da Guerra do Peloponeso

Tucídides (c. 460 - c. 400 a. C.) 



Livro Primeiro

1. O ateniense Tucídides escreveu a história da guerra entre os peloponésios e os atenienses, começando desde os primeiros sinais, na expectativa de que ela seria grande e mais importante que todas as anteriores, pois via que ambas as partes estavam preparadas em todos os sentidos; além disto, observava os demais helenos aderindo a um lado ou ao outro, uns imediatamente, os restantes pensando em fazê-lo. Com efeito, tratava-se do maior movimento jamais realizado pelos helenos, estendendo-se também a alguns povos bárbaros - a bem dizer à maior parte da humanidade. Na verdade, quanto aos eventos anteriores e principalmente aos mais antigos, seria impossível obter informações claras devido ao lapso de tempo; todavia, da evidência que considero confiável recuando as minhas investigações o máximo possível, penso que eles não foram realmente grandes, seja quanto às guerras mesmas, seja quanto a outros aspectos.

2. É óbvio que a região agora chamada Hélade não era povoada estavelmente desde a mais alta antiguidade; migrações haviam sido frequentes nos primeiros tempos, cada povo deixando facilmente suas terras sempre que forçado por ataques de qualquer tribo mais numerosa. Não havia, com efeito, movimento comercial e os povos não se aproximavam uns dos outros sem medo, seja por terra, seja por mar; cada povo arava sua própria terra apenas o bastante para obter dela os meios de sobrevivência, não tendo recursos excedentes e não plantando para o futuro, pois a perspectiva de saque por algum invasor, especialmente por não haver ainda muralhas, gerava incerteza. Assim, acreditando que poderiam obter em qualquer parte o sustento para as suas necessidades diárias, os povos achavam fácil mudar de paragem e por isto não eram fortes, quer quanto ao tamanho de suas cidades, quer quanto a recursos em geral. E sempre as melhores terras eram mais sujeitas a tais mudanças de habitantes - as regiões atualmente chamadas Tessália e Beócia, a maior parte do Peloponeso exceto a Arcádia, e as áreas mais férteis do resto da Hélade. Os recursos mais consideráveis que se acumularam em algumas regiões em decorrência da fertilidade de suas terras ocasionaram divergências internas que as arruinaram, e ao mesmo tempo as tornaram mais expostas à cobiça de tribos alienígenas. A Ática, sem dúvida, esteve livre de disputas locais, graças à aridez de seu solo, e portanto foi habitada sempre pela mesma gente desde épocas remotas. Um exemplo suficientemente abonador de minhas palavras é o fato de outras partes da Hélade não terem prosperado de modo comparável à Ática, exatamente por causa de tais migrações; também os homens mais influentes de outras regiões da Hélade, quando expulsos de suas cidades em decorrência de guerra ou sedição, refugiavam-se em Atenas, comunidade firmemente estabelecida, e, adotando a cidadania ateniense, desde os tempos mais recuados fizeram a cidade cada vez maior em termos de habitantes; tanto foi assim que a Ática se tornou insuficiente para abrigá-los e, portanto, muitos tiveram eventualmente de ser mandados de lá para colônias até na Iônia.


3. A fraqueza característica dos tempos antigos em minha opinião se evidencia também pela circunstância de que, antes da guerra de Tróia, a Hélade presumivelmente não se engajou em qualquer iniciativa conjunta. De fato, parece-me que como um todo ela ainda não tinha sequer este nome, mas antes da época em que viveu Hélen, filho de Deucalíon, tal denominação nem existia, e as diversas tribos, principalmente a pelásgica, davam seus próprios nomes às várias regiões; quando, porém, Hélen e seus filhos se tornaram poderosos na Ftiótida e foram chamados a ajudar outras cidades, aqueles povos daí em diante passaram mais frequentemente a ser chamados helenos, por causa de suas ligações, embora muito tempo tenha passado antes de a designação prevalecer para todos eles. A melhor evidência disto é Homero. Com efeito, apesar de ter vivido muito tempo depois da guerra de Tróia, ele em parte alguma de suas obras usa tal denominação para todos, ou mesmo para qualquer deles, exceto para os comandados de Aquiles da Ftiótida, que foram de fato os primeiros helenos; em seus poemas ele chama os demais de dânaos, argivos e aqueus. E tampouco usou o termo "bárbaros", em minha opinião porque os helenos, de sua parte, ainda não se haviam agrupado distintamente a ponto de adquirir uma designação única em nítido contraste com aquela. Seja como for, os povos que então receberam o nome de helenos, primeiro cidade por cidade, quando havia comunidade de língua, e depois como um conjunto, nada empreenderam incorporadamente antes da guerra de Tróia, por causa de sua fraqueza e falta de contatos. Mesmo para aquela expedição, eles se reuniram somente quando já estavam praticando com desenvoltura a navegação marítima.

4. Minos foi o mais antigo de todos os personagens tradicionalmente conhecidos a ter uma frota e a conquistar grande parte do hoje chamado Mar Helênico, tornando-se o senhor das ilhas Cícladas e primeiro colonizador da maior parte delas, expulsando os cários[1] e estabelecendo nelas os seus próprios filhos como governantes. Ele também tentou, numa sequência natural, livrar os mares tanto quanto possível da pirataria, para receber com maior segurança os tributos que lhe eram devidos.

5. Com efeito, os helenos de antigamente, bem como os bárbaros estabelecidos no litoral do continente ou nas ilhas, ao intensificarem com suas naus as relações marítimas passaram a praticar a pirataria, comandados por homens aos quais não faltava o poder, mas desejosos de obter ganhos pessoais e sustentar seus sequazes mais fracos. Atacando cidades desprovidas de muralhas e constituídas, de fato, de um agrupamento de povoados, eles as pilhavam, obtendo assim a maior parte de seus recursos, pois aquela atividade ainda não era considerada desabonadora, e até proporcionava um renome de certo modo lisonjeiro. Prova disto é a atitude, mesmo nos dias atuais, de alguns povos do continente, que ainda consideram honroso ser bem-sucedidos em tais aventuras, bem como as palavras dos poetas mais antigos, que invariavelmente indagavam de todos que desembarcavam de suas naus se eram piratas[2], de onde se infere que nem aqueles aos quais era feita a pergunta repudiavam a atividade, nem aqueles que pediam a informação assumiam atitude de censura. Também no continente aqueles homens se saqueavam mutuamente e até hoje em muitas partes da Hélade isto ainda ocorre, como por exemplo na região dos lócrios ozólios, dos etólios e dos acarnânios e nas terras continentais vizinhas. Aliás, o costume daqueles povos continentais de portar armas é uma sobrevivência de seus antigos hábitos de pilhagem.

6. Na realidade, todos os helenos costumavam portar armas, porque os lugares onde viviam não eram protegidos e os contatos entre eles eram arriscados; por isto em sua vida cotidiana eles normalmente andavam armados, tal como ainda fazem os bárbaros. O fato de algumas regiões da Hélade ainda manterem esse hábito prova que, em certa época, modos de vida semelhantes prevaleciam por toda parte. Os atenienses, todavia, estavam entre os primeiros a desfazer-se de suas armas e, adotando um modo de vida mais ameno, mudaram para uma existência mais refinada. De fato, não faz muito tempo que os homens mais idosos nas classes privilegiadas, na fase de transição para a vida mais agradável, deixaram de usar túnicas de linho rústico e abandonaram o uso de prender os cabelos em um nó seguro por um broche de ouro com o formato de um gafanhoto; este mesmo modo de trajar-se prevaleceu durante muito tempo entre os iônios mais idosos, devido ao seu parentesco com os atenienses. Roupas mais simples, como as usadas atualmente, foram adotadas primeiro pelos lacedemônios, e em geral os homens mais ricos entre eles evoluíram para um estilo de vida que os aproximou do povo mais que em outras regiões. Os lacedemônios foram também os primeiros a despir-se e, após tirar a roupa em público, untar-se com óleo quando iam participar de exercícios físicos, pois em épocas mais remotas, mesmo durante os jogos Olímpicos, os atletas usavam panos enrolados em forma de cintos em volta dos quadris nas competições, e não faz muitos anos que esta prática cessou. Ainda hoje entre alguns bárbaros (especialmente na Ásia, onde há prêmios para a luta e o pugilismo), os competidores usam esses panos nos quadris. É possível demonstrar que os helenos antigos tinham muitos outros costumes semelhantes aos dos bárbaros atuais.

7. As cidades fundadas mais recentemente, quando a navegação afinal tornou-se mais segura, e que estavam consequentemente começando a ter recursos excedentes, foram construídas no litoral e nos istmos:[3] ocupados e isolados por muralhas, com vistas ao comércio e à proteção dos habitantes contra seus vizinhos. As cidades mais antigas, todavia, tanto nas ilhas quanto no continente, haviam sido construídas a maior distância do mar por causa da pirataria que predominou por longo tempo, pois os piratas não somente pilhavam-se uns aos outros, mas também os habitantes do litoral, mesmo os que não viajavam por mar e até hoje permanecem no interior.

8. Os habitantes das ilhas eram ainda mais inclinados à pirataria. Entre eles se incluíam os cários e os fenícios, pois os primeiros habitavam a maior parte das ilhas, como se pode deduzir do fato de, quando Delas foi purificada pelos atenienses nesta guerra[4] e os túmulos de todos os que haviam morrido na ilha foram removidos, ter-se verificado que mais da metade era de cários, o que foi reconhecido pelo tipo de armadura achada juntamente com os restos mortais, e pela maneira peculiar de sepultamento, ainda em uso entre eles. Quando, porém, a frota de Minos foi constituída, a navegação entre os vários povos tornou-se mais segura, pois os malfeitores das ilhas foram expulsos por ele, que então colonizou a maioria delas, e os habitantes do litoral passaram a adquirir bens mais do que antes e a sentir-se mais presos aos seus lares; alguns até, percebendo que se estavam tomando mais ricos, puseram-se a levantar muralhas em torno de suas cidades. Sua vida mais estável se devia ao desejo de ganhar mais. Influenciados por isto, os habitantes mais fracos se mostraram inclinados a submeter-se à dependência dos mais fortes, e os mais poderosos, com seus recursos aumentados, foram capazes de levar as cidades menores à sujeição, e mais tarde, quando essas condições ficaram completamente consolidadas, empreenderam a expedição contra Tróia.

9. E foi - penso eu - porque Agamêmnon[5] conquistou poder superior ao dos outros, que pôde reunir sua frota, e não tanto porque os pretendentes a Helena, levados por ele, estivessem presos por juramento a Tindáreos[6]. Além disso, dizem também os peloponésios que preservaram os relatos tradicionais mais claros, ouvidos dos homens de épocas anteriores, que foi graças à grande riqueza trazida da Ásia para o meio de um povo pobre que Pélops[7] adquiriu primeiro o poder e, consequentemente, apesar de ser estrangeiro, deu o seu nome à região[8] e fez também com que seus descendentes colhessem benefícios ainda maiores. Com efeito, quando Euristeus iniciou a expedição da qual resultou sua morte na Ática nas mãos dos heráclidas[9], Atreus, irmão de sua mãe, que havia sido banido por seu pai por haver assassinado Crísipos, recebeu provisoriamente de Euristeus a cidade de Micenas e a soberania, na qualidade de consanguíneo; e como Euristeus não regressou, Atreus, de conformidade com o desejo dos micênios, temerosos dos heráclidas e considerando-o um homem poderoso, que conquistara as simpatias da maioria, recebeu em definitivo a soberania sobre os micênios e todos os que estavam sujeitos ao poder de Euristeus. Desta forma a casa de Pélops tornou-se mais importante que a de Perseus[10]. Segundo me parece, foi o fato de Agamêmnon ter herdado tudo isso, e haver-se tornado ao mesmo tempo mais forte em poder naval que os outros, que lhe permitiu reunir forças armadas tão numerosas, não tanto pelo favor da maioria, mas por temor, e realizar a expedição. É claro que ele contribuiu com o maior número de naus, e possuía outras para oferecer aos arcádios[11], como afirma Homero, se o seu testemunho basta a qualquer um. Ele diz, na narração da entrega do cetro[12], que Agamêmnon “reinava sobre muitas ilhas e Argos toda”. Ora: se ele não tivesse uma frota de certa importância, não teria podido, já que vivia no continente, ser o senhor de quaisquer ilhas, exceto as costeiras, e estas não seriam "muitas". É por essa expedição que temos de conjecturar qual era a situação anterior a ela.

10. Por ser Micenas um lugar pequeno, ou porque qualquer cidade daquele tempo isoladamente parece agora insignificante, não seria correto de minha parte considerar estas circunstâncias uma evidência precisa e recusar-me a crer que a expedição contra Tróia tenha sido tão grande quanto os poetas afirmaram e a tradição ainda repete. Com efeito, se a cidade dos lacedemônios se tornasse deserta e nada restasse dela senão seus templos e as fundações dos outros edifícios, penso que a posteridade, após um longo período de tempo, custaria a crer que seu poder fosse tão grande quanto a sua fama. E eles, todavia, ocupam dois quintos do Peloponeso e exercem a hegemonia sobre todo ele, bem como sobre muitos de seus aliados em outras regiões; isso não obstante, como Esparta não é compactamente edificada à semelhança de uma cidade, e não foi dotada de custosos templos e outras construções (ela é habitada à maneira dos povoados no antigo estilo helênico), seu poder pareceria menor que o real. Em contraste, se Atenas tivesse o mesmo destino, penso que seu poder, a julgar pela aparência das ruínas da cidade, pareceria duas vezes maior do que efetivamente é. O razoável, portanto, não é ser incrédulo ou levar em conta a aparência das cidades ao invés de seu poder, mas crer que a expedição a Tróia haja sido maior que qualquer das anteriores, apesar de menor que as do presente, se aqui novamente se pode dar crédito à poesia de Homero. Com efeito, sendo natural supor que ele, como poeta, tenha adornado e amplificado a expedição, é evidente que ela foi comparativamente pequena. Na frota de mil e duzentas naus ele apresentou as da Beócia como sendo tripuladas por cento e vinte homens cada, e as de Filoctetes por cinquenta[13] indicando, creio eu, a maior e a menor das naus; de qualquer modo, nenhuma outra menção é feita ao tamanho de quaisquer outras na enumeração das mesmas. Mas que todos a bordo eram cumulativamente remadores e combatentes ele mencionou no caso das naus de Filoctetes, pois apresentou todos os remadores como archeiros. E não é verossímil que muitos outros homens tenham embarcado com a expedição, salvo os reis e altos dignitários, especialmente se considerarmos que ela tinha de cruzar o alto-mar com todo o equipamento de guerra e, além disto, era constituída de naus sem tombadilho, construídas à maneira antiga, mais parecidas com as dos piratas. Seja como for, levando-se em conta a média entre as naus maiores e as menores, é claro que os homens embarcados não eram muito numerosos, tendo-se em vista que a expedição fora enviada conjuntamente por toda a Hélade.

11. A causa disto não foi a falta de homens, mas de dinheiro; a carência de recursos os compeliu a levar uma força comparativamente pequena, limitada ao que esperavam poder sustentar no campo de batalha; com efeito, quando chegaram e foram vitoriosos nos primeiros combates (como evidentemente aconteceu, pois se assim não fosse não teriam podido construir muralhas defensivas em volta de seu campo), ainda assim não parecem ter usado todas as suas forças, já que tiveram de recorrer a atividades agrícolas no Quersonesos e à pilhagem, premidos pela falta de suprimentos. Em consequência, devido ao fato de eles estarem dispersos os troianos puderam fazer-lhes frente durante aqueles dez anos, pois suas forças se equilibravam com as que, assim reduzidas periodicamente, permaneciam no local da guerra. Se os helenos houvessem trazido um suprimento abundante de víveres e, todos juntos, sem ter de cuidar do abastecimento e da agricultura, houvessem guerreado continuamente, teriam facilmente levado a melhor nas batalhas e tomado a cidade antes, já que mesmo com suas forças divididas, com apenas a parte que periodicamente se revezava no local, eles sustentaram as posições; se se houvessem instalado devidamente e mantivessem constante o cerco a Tróia, tê-la-iam capturado em menos tempo e com menor dificuldade. Por falta de dinheiro, todavia, não somente as ações antes da guerra de Tróia foram insignificantes mas também a própria expedição, embora muito mais notável que qualquer outra anterior, foi, como os fatos demonstram, inferior à sua fama e à repercussão que até hoje, graças à influência dos poetas, tem continuidade.

12. Na realidade, mesmo após a guerra de Tróia a Hélade ainda enfrentava problemas de migrações e fixação, que a impediam de progredir em calma. Não foi só o retorno dos helenos de Tróia, tão demorado, a causa de muitas mudanças. Também começaram a surgir dissidências generalizadas nas cidades e, consequentemente, habitantes de muitas delas foram exilados e fundaram novas cidades. Os atuais beócios, por exemplo, foram expulsos de Arne pelos tessálios sessenta anos após a captura de Ílion[14] e se fixaram na região agora chamada Beócia, mas anteriormente Cadmeis; somente um pequeno número deles habitava aquela terra antes, e de lá saíram os poucos participantes na expedição contra Ílion. Os dórios[15], também, ocuparam o Peloponeso oitenta anos após a guerra, juntamente com os heráclidas. Dessa forma, quando penosamente e após um longo lapso de tempo a Hélade se tornou estavelmente tranquila e a sua população já não estava sujeita à expulsão de suas terras, começaram a ser fundadas colônias. Os atenienses colonizaram a Iônia e a maior parte das ilhas; os peloponésios, a maior parte da Itália e da Sicília, além de algumas regiões do resto da Hélade; todas estas colônias foram fundadas após a guerra de Tróia.

13. À proporção que a Hélade se ia tornando mais forte e adquiria riquezas ainda maiores que as de antes, simultaneamente com o aumento da coleta de tributos começaram a estabelecer-se tiranias em muitas cidades, onde anteriormente havia monarquias hereditárias baseadas em prerrogativas predeterminadas. Os helenos começaram também a constituir frotas, para dedicar-se mais a atividades marítimas (diz-se que os coríntios foram os primeiros a adotar o que é aproximadamente a prática atual a respeito de naus e navegação, e Corinto foi o primeiro lugar em toda a Hélade onde foram construídas trirremes). Parece que Amínocles, um construtor naval coríntio, fez quatro naus para os sâmios trezentos anos antes do fim da presente guerra, época em que foi para Samos[16]. A mais antiga batalha naval de que temos notícia foi travada entre os coríntios e os corcireus, e isto aconteceu duzentos e sessenta anos antes da mesma data. Como os coríntios tinham a sua cidade no istmo, desde os tempos mais remotos eles mantinham ali um entreposto para a troca de mercadorias, porque os helenos de dentro e de fora do Peloponeso, que antigamente se comunicavam mais por terra que por mar, tinham de atravessar o território coríntio; por isto eles eram poderosos e ricos, como demonstram os poetas antigos, que chamavam a região de “opulenta” [17] Quando a navegação se tornou mais intensa entre os helenos, os coríntios, usando a sua frota, moveram guerra à pirataria e, oferecendo um mercado marítimo tão importante quanto o terrestre, tornaram a sua cidade extremamente poderosa graças aos lucros que obtinham. Também os iônios constituíram mais tarde uma poderosa frota, no tempo de Ciros[18] primeiro rei dos persas, e Cambises[19], seu filho; guerreando contra Ciros eles mantiveram o controle do mar em torno de seu litoral durante algum tempo. Polícrates, também, o tirano de Samos no tempo de Carnbises", foi forte em poder naval e dominou certo número de ilhas, entre as quais Rêneia, que capturou e consagrou a Apolo Délio[20] Finalmente os foceus, quando colonizaram Massália[21], venceram os cartagineses em uma batalha naval.

14. Estas eram as frotas mais poderosas; elas mesmas, apesar de constituídas muitas gerações após a guerra de Tróia, eram dotadas de apenas umas poucas trirremes, sendo compostas basicamente de naus de cinquenta remos e embarcações longas, como as frotas mais antigas. De fato, foi somente pouco antes da guerra com a Pérsia e da morte de Darios[22], rei dos persas após Cambises, que as trirremes passaram a ser usadas em grande número, notadamente pelos tiranos em várias partes da Sicília. Estas foram as últimas frotas dignas de menção constituídas na Hélade antes da expedição de Xerxes. Quanto aos atenienses, eginetas e demais potências marítimas, as frotas por eles organizadas eram pouco numerosas, consistindo principalmente em naus de cinquenta remos; só em época bem recente Temístocles convenceu os atenienses, quando estavam em guerra com os eginetas e na expectativa da vinda dos bárbaros [23], a constituir sua frota, com a qual deveriam engajar-se em combate (mesmo essas naus ainda não eram dotadas de tombadilhos em toda a sua extensão).

15. Assim eram as frotas dos helenos, tanto as antigas quanto as recentes, e aqueles que se empenharam em constituí-las adquiriram um poder considerável, seja pelas rendas obtidas graças a elas, seja pelo domínio sobre outros povos. Os que assim agiram - especialmente os povos cujos territórios eram insuficientes - realizaram expedições contra as ilhas e as subjugaram. Por terra, todavia, não houve guerras por meio das quais aumentos consideráveis de poder fossem obtidos; ao contrário, todas as que ocorreram foram guerras de fronteiras entre vizinhos; expedições ao estrangeiro, longe de seus próprios territórios para dominação de outros, não foram empreendidas pelos helenos. Com efeito, eles não se haviam ainda agrupado, como tributários, em tomo de cidades principais, e tampouco faziam expedições conjuntas em pé de igualdade; era mais uns contra os outros e separadamente que os povos vizinhos guerreavam. Foi principalmente na guerra havida há muito tempo entre os calcídios e eretrianos[24] a que todos os demais helenos se agruparam, dividindo-se, como aliados, entre os dois lados.

16. Os diversos povos, todavia, em lugares diferentes, defrontavam-se com obstáculos à continuidade de seu crescimento; por exemplo, depois de os iônios haverem atingido grande prosperidade, Ciros e o império persa, após submeterem Cresos[25] e todo o território entre o rio Hális[26] e o mar, empreenderam a guerra contra eles e reduziram ao cativeiro as cidades no continente, e mais tarde Darios, com o reforço da frota fenícia, escravizou também as ilhas[27].

17. Além disto, os tiranos usurpadores do poder em cidades helênicas, preocupados apenas com seus próprios interesses tanto em relação à imunidade de suas pessoas quanto à prosperidade de suas famílias, na medida do possível fizeram da segurança pessoal o seu principal objetivo na administração das cidades, de tal forma que nenhum empreendimento digno de menção foi realizado por eles, exceto, talvez, por algum isoladamente em conflito com seus vizinhos. Assim, por toda a parte a Hélade foi impedida durante muito tempo de realizar em comum qualquer iniciativa notável, e suas várias cidades careciam de ousadia atuando separadamente.

18. Finalmente os tiranos, não somente de Atenas, mas também do resto da Hélade (dominados por eles desde épocas mais antigas que Atenas), foram depostos pelos lacedemônios - a maioria deles e os últimos ainda no poder, exceto os da Sicília. Embora a Lacedemônia, após a fixação em seu território dos dórios que a habitam agora, tivesse vivido em estado de sedição pelo período mais longo de todos os lugares que conhecemos, mesmo assim conseguira boas leis antes de qualquer outra região e sempre esteve livre de tiranos. Efetivamente, o período durante o qual os lacedemônios desfrutaram da mesma constituição cobre cerca de quatrocentos anos, ou um pouco mais, a contar retroativamente do fim da guerra[28]. Por esta razão tornaram-se poderosos e passaram também a resolver as pendências entre outras regiões. Não muitos anos após a deposição dos tiranos na Hélade pelos lacedemônios travou-se a batalha de Maratona[29] entre os atenienses e os persas, e dez anos após o Bárbaro[30] voltou à Hélade com suas hostes enormes para tentar escravizá-la. Em face do grande perigo iminente os lacedemônios, por serem os mais poderosos, assumiram o comando dos helenos reunidos para a guerra; os atenienses, quando os persas chegaram, decidiram abandonar a sua cidade e, levando os seus pertences, embarcaram em suas naus, tornando-se assim marinheiros. O Bárbaro foi repelido pelo esforço comum, mas não muito tempo depois os outros helenos, tanto os que se haviam revoltado contra o Rei quanto os que se juntaram à primeira coligação contra ele, dispersaram-se e se aliaram, uns com os atenienses, outros com os lacedemônios, pois estes povos se mostraram os mais poderosos, um, forte em terra, e o outro nos mares. A aliança defensiva durou pouco tempo; os lacedemônios e os atenienses se desentenderam pouco depois e, com seus respectivos aliados, passaram a hostilizar-se mutuamente, e quaisquer outros helenos que se desavinham daí em diante se bandeavam para um dos dois lados. Sendo assim, desde a invasão persa até a presente guerra, ora negociando a paz, ora lutando entre eles ou contra seus aliados revoltados, os dois povos se preparavam continuamente e da melhor maneira para a guerra e se tornaram mais experientes, exercitando-se em meio a perigos reais.

19. Os lacedemônios mantiveram sua hegemonia sem transformar os aliados em tributários, mas cuidando de que estes tivessem uma forma oligárquica de governo, de conformidade com o interesse exclusivo de Esparta; os atenienses, por seu turno, fizeram com que as cidades aliadas paulatinamente lhes entregassem as suas naus, à exceção de Quios e Lesbos, e impuseram a todos um tributo em dinheiro. Desta forma os recursos próprios dos atenienses disponíveis para a guerra tornaram-se maiores que os dos lacedemônios e seus aliados ao tempo em que a aliança anterior estava intacta e forte.

20. Segundo as minhas pesquisas, foram assim os tempos passados, embora seja difícil dar crédito a todos os testemunhos nesta matéria. Os homens, na verdade, aceitam uns dos outros relatos de segunda mão dos eventos passados, negligenciando pô-los à prova, ainda que tais eventos se relacionem com sua própria terra. Muitos atenienses, por exemplo, pensam que Híparcos era tirano quando foi morto por Harrnôdios e Aristógiton[31], Eles não sabem que era Hípias quem governava, sendo o filho mais velho de Pisístratos, e que Híparcos e Téssalos eram apenas seus irmãos; aconteceu que Harmôdios e Aristógiton, suspeitando, no mesmo dia e no exato momento de executarem o plano, de que uma denúncia havia sido levada a Hípias por um dos cúmplices deles, recuaram diante do mesmo supondo-o prevenido; desejando, porém, fazer algo antes de serem detidos e correr todos os riscos, lançaram-se contra Híparcos, que então encabeçava a procissão Panatenaica perto do santuário chamado Leucórion, e o mataram. Há muitos outros fatos, também, pertencentes ao presente e cuja lembrança não foi embotada pelo tempo, a respeito dos quais os outros helenos mantêm igualmente opiniões errôneas (por exemplo, que entre que entre os lacedemónios os reis têm direito a dois votos, e que há uma companhia chamada Pitana em seu exército, coisas que jamais existiram). A tal ponto chega a aversão de certos homens pela pesquisa meticulosa da verdade, e tão grande é a predisposição para valer- se apenas do que está ao alcance da mão![32]

21. À luz da evidência apresentada até agora, todavia, ninguém erraria se mantivesse o ponto de vista de que os fatos na antiguidade foram muito próximos de como os descrevi, não dando muito crédito, de um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e amplificando os seus temas, e de outro considerando que os logógrafos[33] compuseram as suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos que de dizer a verdade[34] uma vez que suas estórias não podem ser verificadas, e eles em sua maioria enveredaram, com o passar do tempo, para a região da fábula, perdendo, assim, a credibilidade. Deve-se olhar os fatos como estabelecidos com precisão suficiente, à base de informações mais nítidas, embora considerando que ocorreram em épocas mais remotas. Assim, apesar de os homens estarem sempre inclinados, enquanto engajados numa determinada guerra, a julgá-la a maior, e depois que ela termina voltarem a admirar mais os acontecimentos anteriores, ficará provado, para quem julga por fatos reais, que a presente guerra terá sido mais importante que qualquer outra ocorrida no passado.

22. Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidades quando estavam prestes a desencadear a guerra ou quando já estavam engajados nela, foi difícil recordar com precisão rigorosa os que eu mesmo ouvi ou os que me foram transmitidos por várias fontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, considerando os respectivos assuntos e os sentimentos mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados, embora ao mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quanto possível ao sentido geral do que havia sido dito. Quanto aos fatos da guerra, considerei meu dever relatá-los, não como apurados através de algum informante casual nem como me parecia provável, mas somente após investigar cada detalhe com o maior rigor possível, seja no caso de eventos dos quais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quais obtive informações de terceiros. O empenho em apurar os fatos se constituiu numa tarefa laboriosa, pois as testemunhas oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória. Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará. Na verdade, ela foi feita para ser um patrimônio sempre útil, e não uma composição a ser ouvida apenas no momento da competição por algum prêmio.

23. O acontecimento mais importante dos tempos passados foi a guerra com os persas, e todavia ela foi prontamente decidida em dois combates navais:[35] e duas batalhas terrestres[36]. Mas a guerra do Peloponeso estendeu-se por longo tempo, e no seu curso a Hélade sofreu desastres como jamais houvera num lapso de tempo comparável. Nunca tantas cidades foram capturadas e devastadas, algumas pelos bárbaros:[37] outras pelos próprios helenos combatendo uns contra os outros, enquanto algumas, após a captura, sofreram uma mudança total de habitantes[38]. Nunca tanta gente foi exilada ou massacrada, quer no curso da própria guerra, quer em consequência de dissensões civis. Assim, as estórias dos tempos anteriores, transmitidas por tradição oral, mas muito raramente confirmadas pelos fatos, deixaram de ser incríveis; as referentes a terremotos, por exemplo, pois eles ocorreram em extensas regiões do mundo e foram também de grande violência; eclipses do sol, que ocorreram a intervalos mais frequentes do que os mencionados para todo o tempo passado; grandes secas, também, em algumas regiões, com a sequela da fome; finalmente - o desastre que causou mais infortúnios à Hélade e destruiu uma considerável parcela de sua população - a peste epidêmica. Todos esses desastres, na verdade, ocorreram simultaneamente com a guerra, e ela começou quando os atenienses e peloponésios romperam a trégua de trinta anos:[39], concluída entre eles após a captura da Eubéia. As razões pelas quais eles a romperam e os fundamentos de sua disputa eu exporei primeiro, para que ninguém jamais tenha de indagar como os helenos chegaram a envolver-se em uma guerra tão grande. A explicação mais verídica, apesar de menos frequentemente alegada, é, em minha opinião, que os atenienses estavam tornando-se muito poderosos, e isto inquietava os lacedemônios, compelindo-os a recorrerem à guerra. As razões publica mente alegadas pelos dois lados, todavia, e que os teriam levado a romper a trégua e entrar em guerra, foram as seguintes.


TUCÍDIDES (c. 460 - c. 400 a. C.) História da Guerra do Peloponeso; Prefácio de Hélio Jaguaribe; Trad. do grego de Mário da Gama Kury. – 4ª. edição - Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001 - (Clássicos IPRI, 2)





[1] Habitantes da Cária, ao sul da Iônia na Ásia Menor (para os topônimos, gentílicos e nomes próprios em geral, veja-se o índice).
[2] Homero, Odisseia, canto IH, verso 73 e canto IX, verso 252.
[3] As cidades fortificadas, como Epídauros (livro I, capítulo 26) e Potidéia (IV, 120), eram geralmente construídas em penínsulas; os istmos que as ligavam ao continente eram cortados por muralhas, para protegê-las contra ataques de forças terrestres.
[4] No sexto ano da guerra (420 a. C); veja-se o livro IH, capítulo 104.
[5] Rei de Argos ao tempo da guerra de Tróia e comandante dos gregos na mesma guerra.
[6] Tindáreos era pai de Helena. Segundo as tradições pós-homéricas, todos os que a cortejavam se comprometeram a defender o pretendente por ela escolhido contra quaisquer desafetos.
[7] Avô de Agamêmnon.
[8] O Peloponeso.
[9] Os descendentes de Héracles; Atreus era filho de Pélops e pai de Agamêmnon; Crísipos era irmão de Atreus por parte de pai.
[10] Perseus renunciou ao trono de Argos e fundou Micenas, que se tornou a sede do reino de Argos antes da assunção dos atridas (descendentes de Atreus) ao poder.
[11] Homero, Ilíada, lI, 576 e 612.
[12] Veja-se Homero, I1íada, n, 101-109.
[13] Homero, Ilíada, n, 510 e 719.
[14] Ílion era a cidadela de Tróia.
[15] Um dos ramos da raça helênica, originário do norte da Grécia atual, que invadiu o sul entre 1100 e 1000 a.C., deslocando principalmente os micênios.
[16] Em 704 a. C.
[17] Vejam-se Homero, Ilíada, 11, 570, e Píndaro, Olímpicas, XIII, 4.
[18] 559-529 a. C.
[19] 532-522 a. C.
[20] Délio (da ilha de Delos) era um dos epítetos de Apolo. Veja-se o livro 111, capítulo 104.
[21] A Marselha atual, fundada em 600 a.c.
[22] Em 485 a. C.
[23] Tucídides refere-se à expedição de Xerxes; veja-se o livro I, capítulo 41, para a guerra com Egina.
[24] No século VII (ou VIII) a. C. Veja-se Heródoto, Histórias, livro V, capítulo 99.
[25] Em 546 a. C.
[26] Hoje o Kizil-ermak, na atual Turquia.
[27] Em 493 a. C.
[28] Sendo assim, a legislação de Licurgo, à qual se refere Tucídides, dataria de 804 a. C.
[29] Em 490 a. C.
[30] Denominação genérica para os persas, personificados por seu rei.
[31] Sobre este episódio, vejam-se o próprio Tucídides, capítulos 54 e 56-58 do livro VI, Heródoto, livro V, capítulo 55 e livro VI, 123, e Aristóteles, Constituição de Atenas, 17 e seguintes.
[32] Alguns estudiosos veem neste trecho uma alusão ao livro VI, capítulo 57, e livro IH, S,S das Histórias de Heródoto.
[33] Os historiadores mais antigos eram chamados logógrafos; a partir de Tucídides a palavra adquiriu uma conotação pejorativa.
[34] Nova alusão a Heródoto, segundo alguns estudiosos.
[35] Artemísion e Salamina.
[36] Termópilas e Platéia.
[37] Como Colofon (livro III, 34) e Mitilene (VII, 29).
[38] Sôlion (livro Il, capítulo 30), Potidéia (lI, 70), Anactórion (IV, 49), Cione (V, 32) e Melos (V, 116) .
[39] Em 445 a. C,; veja-se o capítulo 44 deste livro.

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