M.S. Perdi a conta. Lembro do tempo em que descobri os livros, quase inexistentes em minha casa porque meus pais eram muito pobres. Mas fui a bibliotecas públicas, li coisas emprestadas, ia à Livraria Universitária, sentia inveja dos colegas de classe média que compravam tantas obras ou já as encontravam nas bibliotecas de seus pais. No meio do curso colegial (Atheneu), percebi, surpreso, que já dominava tanto a leitura literária quanto aqueles amigos, talvez até um pouco mais porque gostava da área. Mas não encarei isso como vitória sobre eles, o prazer da leitura e da escrita é para ser dividido, como ocorre com o amor.
Em Natal, lembro de um livro em três volumes (depois, lançaram o quarto), “Sociologia da Arte”, que comprei por indicação de Luiz Damasceno, da Livraria Universitária. Foi quando li Walter Benjamin, Pierre Francastel e Lucien Goldman pela primeira vez, autores que me acompanhariam sempre.
Outro momento forte foi o ingresso na USP, como aluno. Tive a sensação de que precisava aprender muita coisa. Não foi ruim sentir isso, tento até hoje aprender, mas foi difícil, no começo, enfrentar a auto-cobrança.
Na adolescência natalense, minha vontade era produzir Artes visuais, estudar esse campo. Consegui fazer uma boa graduação na área com mais de 40 anos. Descobri que tinha virado, antes, historiador e talvez escritor (o fato de Sanderson Negreiros elogiar uns textos ensaísticos meus me dá alguma esperança na área), embora ainda goste muito de ver aquelas Artes.
L.O. A vida acadêmica se tornou o cume de seu trajeto?
M.S. Prefiro um trajeto sem cume: “Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia / o que aconteceria de qualquer jeito.” (Caetano Veloso, “Janelas abertas nº 2”).
Gosto muito de pesquisar na universidade, ensinar na universidade, aprender na universidade – bibliotecas, laboratórios e públicos interessados ali reunidos. Mas o conhecimento e a vida se dão em todos os espaços da sociedade, é melhor evitar supor algum lugar que detenha o monopólio do saber – universidade, academia, grupo.
Guardo ótimas lembranças do tempo em que lecionei para adolescentes em escolas públicas de ensino básico e fundamental. E participo de um grupo de Cultura Popular (Ô de Casa), que inclui de crianças a idosos de diferentes grupos sociais: empregada doméstica, advogada, professora, operária aposentada. Dançamos e cantamos Pastoril e Trança-fitas. Também canto música popular, estudei um pouco de canto – gosto de música brasileira diversificada, e também de música norte-americana, cubana e ópera. Escrevo, de vez em quando, letras para canções, quase nunca musicadas – é meu cancioneiro imaginário. Faço versões de canções (inglês e francês) e traduzo poesia, de vez em quando.
L.O. Por falar nisso, falta algo à academia para que ela possa se inserir de maneira definitiva na realidade brasileira, transformando-a eficazmente?
M.S. Falta mobilizar mais pessoas como interessados pelos vários campos de pesquisa desenvolvidos pelas universidades, produtores desses vários campos de pesquisa. Num país do tamanho do nosso, com a população que o nosso tem, considero minúsculo o número de homens e mulheres que interagem com a universidade. Há bibliotecas, laboratórios e falas de grande qualidade, nas universidades, de que tão pouca gente desfruta. Os programas PROUNI e REUNI são interessantes nessa ampliação de público, apesar de equívocos: não gosto do critério “raça”, adotado pelo primeiro. Sinto falta de museus, bibliotecas e laboratórios funcionando em horários adequados para gente que trabalha e quer conhecer tais mundos. Para ser universal mesmo, a universidade não pode excluir parcelas da população. Felizmente, as universidades públicas estão universalizando os cursos noturnos – nunca entendi o fato de eles não existirem em muitas daquelas unidades.
L.O. Você tem visto originalidade naquilo que é produzido pelas universidades?
M.S. Em termos de conteúdos, resultados de pesquisa, sim. Aliás, a universidade dedicada à pesquisa (que não se confunde com instituições voltadas para um ensino duvidoso, fábricas de diplomas) se obriga a procurar originalidade sempre. Uma questão que me preocupa é a escassa presença institucional na produção artística. É claro que professores e estudantes produzem artes por conta própria. Mas a instituição mesmo costuma, no máximo, gerar boas análises sobre artes e divulgar artes produzidas fora dela. Seria ótimo se houvesse uma maior presença de pólos produtores de artes no próprio meio universitário – ateliês mais abertos à produção pública, oficinas de filmes e vídeos, etc. As artes são boas amigas das ciências, às vezes provocativas mas fiéis.
L.O. Como tem visto o crescimento da UFRN? Já dá para comparar com as grandes universidades do sul-sudeste do país?
M.S. Morei em Natal até 1970. Calculo que não havia sequer metade da oferta de áreas que a UFRN conhece hoje. E os campi no interior não funcionavam ainda. O crescimento é significativo, algumas unidades merecem ótima avaliação nacional. Na comparação com grandes universidades nacionais, entendo que ainda faltam equipamentos e produções. A biblioteca da UFRN é a melhor do estado, desejo que ela cresça ainda mais. As publicações aumentam de número, falta-lhes visibilidade – problema em comum com outras universidades públicas. A comparação com grandes centros do sul-sudeste é válida em relação a algumas áreas (Psicologia e Odontologia recebem ótimos comentários de avaliadores nacionais, li ótimas publicações da área de Letras), ainda merece aprofundamento noutras. Mas o espaço universitário não é apenas local, sempre se relaciona com outros centros nacionais e estrangeiros.
L.O. Em quê novas publicações como a revista de história da Biblioteca Nacional e outras similares têm colaborado no estudo da História?
M.S. Abordam temas de interesse, contam com bons colaboradores, atingem um público leitor ampliado. Sou favorável a esse tipo de publicação, desde que outros tipos (revistas especializadas, livros divulgando pesquisas aprofundadas) sejam garantidos. Essas revistas são muito diferentes de experiências televisivas mal-sucedidas, que usaram apresentadores sem um mínimo talento jornalístico ou dramático/cômico, além de textos absolutamente deploráveis.
L.O. Quem é o grande personagem histórico desse país?
M.S. O homem e a mulher comuns, que se revelam incomuns para sobreviverem e criarem beleza neste difícil país. Sobrevivem e criam, freqüentemente a duras penas. Quando ouvimos um cantador ou um sambista de diferentes regiões (cantando ou dançando), entendemos que a grandeza existe.
L.O. Em quê se entrecruzam a literatura e a história?
M.S. Em primeiro lugar, na escrita: historiadores são escritores – uns melhores, outros piores. Em segundo lugar, na reflexão sobre experiências de homens e mulheres. A Literatura (ficção, poesia, ensaio) leva o leitor a raciocinar através do sensível e da imaginação sem limites. A História convida o leitor a indagar sobre experiências palpáveis, procurando seus significados menos visíveis. Em terceiro lugar, no convívio reflexivo com o tempo humano que é mais que tempo físico. Melhor pensar que Literatura e História são amantes, altamente complementares, gozando juntos.
L.O. Você, que é também um estudioso e amante do cinema, poderia nos dizer que momento o cinema mundial vive atualmente?
M.S. Depois do filme em função da produção de gadgets (a partir de “Star Wars”), hiper-mercadorias, vejo transformações especialmente na privatização do acesso a filmes – vídeos – e uma grande banalização da computação gráfica. A morte de Bergman e Antonioni foi um grande susto: eles eram mortais! Mas eu ainda sinto poesia e concisão em gente como David Lynch (“A História Real”), Karim Aïnouz (“O céu de Suely”) e Eduardo Coutinho (todos os filmes).
L.O. E o cinema brasileiro?
M.S. A resposta anterior já começou a atual: Eduardo Coutinho filmou uma obra-prima absoluta que é “Cabra marcado para morrer”, importante não apenas como memória popular da ditadura, mas especialmente enquanto indagação sobre o Brasil depois da ditadura. Elizabete Teixeira pergunta, profeticamente, no encerramento do filme: que democracia é essa? Entendo essa questão como uma cobrança sobre dimensões sociais da democracia, e também como convite a fazermos filme sobre o Brasil depois da ditadura. Uma coisa boa tem sido a riqueza das produções fora do eixo Rio/São Paulo, com ótimos filmes baianos e pernambucanos, dentre outros.
L.O. Que frutos trouxe o Dicionário Crítico Câmara Cascudo?
M.S. No plano pessoal, reinventei-me como potiguar, entendi mais que minha vida natalense no Alecrim ficou para sempre dentro de mim. No plano coletivo, penso, imodestamente, que contribuiu para uma rediscussão de Câmara Cascudo em escala acadêmica e nacional. O dicionário é uma obra de equipe, orgulho-me de ter proposto o projeto e coordenado sua execução, mas suas qualidades se dividem entre dezenas de grandes especialistas maduros e jovens pesquisadores iniciantes. É um dos livros que coordenei de que mais gosto.
L.O. Cascudo ainda tem muito o que ensinar?
M.S. Sim, como todo autor de seu porte. Aprecio especialmente seu olhar para o universo da Cultura Popular, o diálogo permanente que ele estabelece entre essa Cultura e diferentes temporalidades e espaços (Mesopotâmia, África, Europa), bem como o outro diálogo com diferentes gêneros textuais (Filosofia, Ficção, Poesia). Penso que aprender com Câmara Cascudo não é repetir o que ele disse, é inventar relações com a Cultura Popular a partir do que ele disse. Quem é povo no Brasil de hoje? As categorias clássicas de constituição do povo brasileiro (Europa, África e América indígena) não sobrevivem diante da presença expressiva de contingentes imigrantes latino-americanos e asiáticos. Não vejo isso como problema e sim como cobrança de solução: identidades se fazem a cada dia, precisamos dar conta de sua interpretação.
L.O. O que é tocado pelo universal, Marcos?
M.S. A condição humana. E, nela, as várias modalidades de amor.
L.O. No que respeita à cultura, o governo Lula tem avançado?
M.S. Um pouco. Timidamente, como noutras áreas de sua gestão - embora bem melhor que na presidência de FHC, misto de empáfia e vazio, apesar de alguns auxiliares muito bem preparados. Gilberto Gil surpreendeu os preconceituosos, que o trataram como um ignorante por ser cantor de música popular: ele foi um ministro inteligente e criativo, apesar de grandes limites de orçamento. Mas eu gostaria de multiplicar por mil as iniciativas que surgiram. Os pontos de cultura são interessantes, mas é preciso aceitar mais poderes populares decisórios, em Cultura e noutras áreas. Uma decepção minha, em relação ao governo Lula, é o culto à eficiência administrativa que ele trouxe, sem assumir a dimensão política dos fazeres governamentais nem assimilar mais setores sociais na esfera decisória. Apesar de tudo isso, penso que o mundo pode melhorar – é meu lado Anne Frank.
L.O. As idéias socialistas ainda vivem ou somente sobrevivem?
M.S. Vivem como naquela canção “Noite cheia de estrelas”: “As estrelas tão serenas / Qual dilúvio de falenas / Dançam tontas ao luar.” Quem inventou a crítica ao Socialismo soviético não foi o Neo-Liberalismo. Nesse sentido, a queda do bloco soviético foi um alívio para Socialistas libertários. O problema é: nós nos livramos de um abacaxi (aquilo que chamavam de Socialismo, e que não passava de sociedade administrada) e caímos num vazio – cadê as novas propostas socialistas? Considero o Socialismo uma extrema necessidade no mundo do Capitalismo triunfante. Ao mesmo tempo, o Capitalismo existente inclui contradições internas, propostas diversificadas – nem tudo é Capitalismo.
L.O. Em sua obra sobre Henfil e a ditadura, o que você descobriu, em síntese, sobre ambos?
M.S. Gosto especialmente da inquietude de Henfil, apesar de suas recaídas patrulheiras e do extremo apreço que demonstrou por Teothônio Vilela, como se o fim da ditadura derivasse de duvidosas lideranças de elite. E a ditadura não controlava tudo, dava pra rir gostosamente (embora dolorosamente) dela. Publiquei alguns artigos extraídos de minha Tese de Livre Docência sobre Henfil, até hoje não consegui rever o conjunto para publicação em livro – um de meus projetos.
L.O. Henfil gostou de viver em Natal?
M.S. A pessoa mais indicada para responder a essa pergunta seria ele mesmo. Antes de vir para Natal, ele falava da cidade como portal da caatinga, imagem meio romântica. Vivendo em Natal, ele descobriu nossas mini-Rio de Janeiro e mini-New York. Penso que Natal é especificidade e mundo, como toda cidade. Nesse aspecto, angústias e astúcias de Henfil se manifestaram em Natal, e em relação a Natal.
L.O. Marcos, a História acabou?
M.S. Nem um pouco. Depois das torres gêmeas explodidas (lamentei muito pelas vidas humanas que se perderam, nos prédios e nos aviões, bem como lamento outras vidas perdidas pelo mundo todo em guerras e conflitos similares), depois da guerra contra o Iraque (soldados estadunidenses negros e mulheres torturando prisioneiros, no mais puro estilo nazista), dá para pensar que alguma coisa acabou? Talvez tenha findado uma esperança ingênua de que estávamos a dois passos do paraíso – socialista ou não. Entramos numa História menos cor de rosa, que continua a ser História.
L.O. Como você lê as seguintes palavras, ditas por Jean-Paul Sartre em "A Náusea": "Não refletir muito sobre o valor da História. Corre-se o risco de perder o gosto por ela."?
M.S. Refletir é condição para experimentar o gosto. Considero necessário enfrentar amargor e doçura eventuais. Não refletir é ser levado pela História. Melhor enfrentar os riscos: “Vou pra rua e bebo a tempestade” (Chico Buarque, “Bom conselho”).
Extraído do Blog Teorema da Feira